terça-feira, 17 de maio de 2011

Sendo Humana.

Tornou a movimentar-se em um esforço desesperado dos seus pulmões. Sentiu um gosto amargo na boca, retomando, assim, a consciência do próprio corpo. A cabeça lhe parecia lenta e pesada. Sentiu os membros doloridos junto às articulações. Enquanto um vazio enorme tomava conta do seu estômago.

Repentinamente, abriu os olhos. O susto inicial.

Piscou algumas vezes. Desembaçando a vista. Conhecia o quarto a sua volta. Era o mesmo desde que... “Quanto tempo?! Quanto tempo passou?!”

Apreensivamente examinou o ambiente que a cercava. O teto branco. As paredes azuis. A porta de madeira gasta e esburacada. Semicerrada, como de costume. Janelas fechadas. As densas cortinas brancas. “É dia ou noite lá fora?”

Voltou sua atenção para seu próprio corpo, que se escondia sob a colcha vermelho-vinho.

A imagem que obteve de si mesma ao observar-se a assombrou. Ficou imóvel por longos minutos. Aquele não era o mesmo corpo que havia carregado durante tantos anos. “Carreguei”. Era essa a relação que tinha estabelecido com seu próprio corpo durante sua vida até então.

Agora, a imagem que percebia de si mesma se alterava. Era menor o seu corpo. E ao mesmo tempo, sentia que algo havia crescido absurdamente dentro dela. Seus olhos arregalaram-se diante das disparidades. Algo dentro de si mesma, em algum momento, havia sido germinado. Dolorosamente. E desde então, vinha tomando forças e se enraizando profundamente dentro dela.

A pele já não era mais a mesma. Assustou-se com a clareira que parecia irradiar do tecido branco que cobria seu corpo. Antes frio e pálido. Agora parecia irradiar por toda a sua pele um reflexo involuntário do seu organismo. Viva. Era viva a sua pele. Repentinamente, sentiu que todos os pelos do seu corpo estavam eriçados. Como se a vida guardada dentro dela fosse explodir a qualquer momento.

Ao mesmo tempo, percebeu que seu corpo guardava, silenciosamente, alguns pequenos hematomas. Tateou com as pontas dos dedos, e com muito cuidado, cada um deles. Eram feridas internas. O Passado pulsando delicadamente sob o presente. Seus olhos brilharam cortantes.

Agora havia, em seus olhos, uma navalha fina, que sentia transpassar sua retina. Crescimento. A dor gera crescimento e força. “E quanto mais fraca... Mais forte eu fico.”. Ironia. Sarcasmo. Seus olhos eram ironia pura. Mais velhos e profundos.

Percebeu a longa jornada que havia percorrido. Longas estradas. Sobre pedras e espinhos. Rostos conhecidos habitavam no que havia de mais sutil e profundo dentro dela. Alguns deles causavam nela conforto, outros, dor, enquanto outros... “Muita saudade.”

Momentos rápidos começaram a passar pela sua cabeça. Entrecortados. De acordo com a dor ou felicidade que haviam provocado nela. Agora, podia assistir com alguma distância a menina que convulsionava pelo contato com o mundo ao seu redor.

Viu-se deitada sobre chãos frios tentando conter espasmos de dor que lhe acometiam. Viu-se encarando, mudamente, o mesmo espelho, por diversas vezes. Como se buscasse algo dentro dos seus próprios olhos, como se questionasse a si mesma, exigindo respostas. Exigindo-se. “Seja. Está na hora de ser!”

Viu-se em alta velocidade sobre ruas de asfalto. Perfurando ares frios. Enquanto se entregava às dezenas de pores-do-sol. Ao mesmo tempo em que sentia seu coração sendo rasgado pouco a pouco.

O pôr-do-sol era para ela como o Fim e o Início. Convivendo pacificamente no mesmo céu. Para que algo novo nasça, é preciso, às vezes, que se destruam antigos hábitos. Velhas ilusões. Sentimentos desgastados. Barreiras. Inseguranças. Medos.

Era preciso que, antes de mais nada, destruísse tudo aquilo. “Aquilo”. Aquilo que a tornava “inacessível”. Para que, sobre terreno limpo e fértil, fossem semeadas novas percepções. Cuidadosamente. Sobre a terra úmida. “Em carne viva.”

Estava em carne viva. E percebeu que, dali em diante, talvez esse fosse seu estado permanente. Viveria em carne viva. Sensível. Intensa. Essa era Ela. Aceitava-se, finalmente. A verdadeira. Sem medo de Ser o que era.

Para que chegasse até ali precisou de mais tempo e paciência consigo mesma. Precisou Ser. E foi sendo, aos poucos. Se conhecendo. Permitindo-se. Submergindo dentro de si mesma.

Até que chegou ao ponto de perceber que aquela seria uma busca constante. A busca de si mesma. Era uma viagem perigosa. Sem fim. Da qual, iniciada, não teria mais chances de fazer o caminho de volta. As lâmpadas foscas e mal penduradas apagavam-se atrás dela, pelos labirintos que vinha percorrendo ao longo dos últimos... Dias? Semanas? Meses? Quanto tempo havia durado? Por quanto tempo havia... “Dormido?”

Sentiu, repentinamente, seus pés. Estavam doloridos. Havia pisado sobre cacos de porcelana quebrada. As bonecas quebradas dentro dela. As meninas que insistiu por tempo demais guardar em si mesma. Não as encontrava mais. O escuro daquele labirinto. “Abismo profundo.” As bonecas partidas. Seus cacos lhe arrancaram sangue, que sentiu escorrer quente pela planta dos pés enquanto percorria seu próprio labirinto.

Tinha levado consigo uma pequena vela acesa. Que sabia ser o suficiente para manter-se acordada no escuro. O suficiente para não se perder do pouco que sabia. Sabia sua vida. Sabia sua família. Seus amigos. Seus amores. Sabia, agora, amar. Verdadeiramente. Através de si mesma. ELA era a única chave para o amor. E, agora, tinha consciência disso.

Sentiu seu “corpo sutil” (Diria Lygia) transbordar por todo o seu corpo físico. Sentiu que a cada dia sua alma lhe escorregaria mais por entre seus próprios dedos. E sorriu com a nova descoberta. Pois se não há a procura... No momento em que deixamos de buscar... Estamos mortos dentro de nós mesmos. Não existe vida gritando. Se contorcendo. Pulsando. Crescendo. Se transmutando. Fazendo de nós seres humanos. Imprevisíveis.

É necessária a exasperação do mundo interno com o mundo que nos cerca. O encantamento. Pequenos assombros. Pequenas descobertas. Grandes encontros.

Não reconhecemos a paz quando nunca olhamos nos olhos da angústia. Não diferenciamos o mal daquilo que realmente nos faz bem, quando não passamos pela experiência de ambos. Não procuramos pelo amor, a menos se tivermos passado pela dor de não termos sido amados. Ou de não termos aprendido como amar aquela pessoa. Não reconhecemos o que é infinito: o Cairós, sem termos tido a dura pena do Crohnos: o mutável, o passageiro. Do que não nos mata a sede. Do que é fugaz.

A então Mulher voltou a abrir seus olhos, mas dessa vez o fez lentamente. Sem sustos. Sem o receio. Mas sentindo cada um dos seus cílios se desprendendo lentamente do seu rosto. Acompanhou o movimento pesado de suas pálpebras. Era como se estivesse adormecida durante anos. E agora nascesse de novo.

Inalou prazerosamente o ar novo que a rodeava. Afastou com um gesto suave a colcha do seu corpo. Levantou-se da cama, alongando cada um dos meus membros. Em um movimento felino. Sentia-se felina. Suave. E ao mesmo tempo, consciente de cada um dos seus movimentos. Sutis e delicados. Marcantes e passageiros. Passageira. Como todo ser humano em constante processo de crescimento deve ser. Como todo ser humano vivo deve ser. Estava Sendo Humana.

Caminhou com os pés descalços até a pesada cortina branca e a abriu. A luz do dia tomou conta do seu corpo. Ela abriu uma pequena fresta entre seus lábios para engolir os finos raios de sol que lhes eram oferecidos pelo dia. Com outro gesto, afastou o vidro da janela, permitindo que o vento gelado lhe tocasse o rosto e bagunçasse seus cabelos.

Uma música tocava em algum lugar. Não pôde reconhecer de onde vinha, mas uma vontade imensa de dançar tomou conta do seu corpo. Dançou levemente e de olhos fechados até cair sobre o tapete no chão. Encontrou seus olhos no espelho. Encontrou sua face. “Sou fluida. Sou casca. Quero romper a casca. Quero ser apenas o fluido de mim. Quero Debussy. Quero velas aromáticas. Quero todos os pores-do-sol.”

Soltou um riso frouxo. Que ecoou por dentro dela. Ela vivia dentro dela. E agora também para o mundo. Corpo. Alma. Mundo. Pôde sentir uma invisível linha de conexão entre os três. Um equilíbrio que se encontrava por meio de um verdadeiro desequilíbrio total. Precisaria apenas Ser. E mais nada. Agora ela era, finalmente, humana.

3 comentários:

Amanda G. Cardoso disse...

Lindo xuxua. Depois que li esse texto que decidi te mandar as mensagens.
Mas ainda sinto saudades e queria conversar mais com vc.
Me sinto meio ao vento agora.
Acho também que o que impulsionou a sua mudança foi "aquilo" ou melhor "aquele", não é mesmo?

"ELA era a única chave para o amor. E, agora, tinha consciência disso."

Pura verdade, nós somos a chave para o amor. =)

Bjos
Amo você.

Damaris disse...

Ah xuxua....

foram tantos os passos... tantos os caminhos tortos que me levaram até essa mudança...

Esse motivo de que você falou não representa nem um centézimo de tudo que me trouxe até aqui...

Um dia poderemos conversar longamente sobre nossos caminhos...
sinto sua falta também... gostaria de estar aí para poder lhe dizer... que tudo passa... rsrs...
parece tão pequeno.... mas acho que poderia significar alguma coisa...

amo vc!

Aliny disse...

Hora da mudança ... do crescimento .. e das dores também ... mas aprendemos com ela, não é mesmo ?!?
A dor nos ensina a ser mas forte ...

Mesmo longe, sabe que pode contar comigo... para qualquer coisa.

Saudade Negaa. Beijoos