Talvez a forma como as almofadas estão dispostas na sala. “Largado”, assim, ele fica tão desarmado. Talvez respondesse sem pensar. Sem se esquivar. Talvez as almofadas. Ao contrário da postura que ele assume nos ensaios. Ao contrário da imagem que ele cria como sendo sua. Imagem. Nas almofadas ele fica sem escudo. Sem a máscara. E se eu perguntasse...
- Clara? Será que dá pra passar a música...?
Essa música estava me angustiando mesmo.
-Ah... Essa está melhor... Puts! É sua música Beto! Não lembra, Clara? A música de fundo do enredo de julho...
-Lembro... Lembro sim.
Ainda posso vê-lo entrando naquela festa. A primeira vez que o vi. Ou melhor, que o notei. Quebrando o gelo das rodinhas. Panelinhas de gente que não se mistura. O cabelo desfeito. Calças. Camisa. De tal forma que em outra pessoa não cairia tão bem. Não deslizaria. Não acompanharia o balanço do corpo. Não embalaria tão bem. A música. O corpo. A posição da cabeça inclinada para baixo. Como quem espreita a si mesmo. Como quem dança consigo mesmo.
-Estou oco. Morto de fome. Um lanche cairia bem...Mas a última coisa agora é querer levantar desse chão gelado...
- Vou derreter...Clarinha? Você anda tão distante ultimamente...
Voltei do devaneio alarmada.
-Eu?
Acho que confirmei sua suspeita. Mas não custa tentar.
-Imagina... Impressão sua.
Não convenci. Mas ele está sem ânimo para insistir. As almofadas fazem os olhos pesarem. Seus olhos estreitos ficam mais estreitos ainda quando está assim. Jogado nelas. E quando dança também. Ele fecha os olhos. E deixa ser levado. Ele se entrega. E eu me entrego. Charmoso. Ele é charmoso. Afe! A quem estou tentando enganar? Se fosse só o charme que nos tivesse feito chegar até aqui. Se fosse só charme e mais nada. Não teria chegado aonde chegou. Não teria aberto minha vida a ele. Não sou disso. Nunca fui. A coisa é que... Meu pai! Como ele é diferente! Não é só a inteligência. Talvez a forma como encara as coisas. Vai ver é só o cavanhaque. Ou a tatuagem no braço... Rá! Agora a culpa é da maldita tatuagem. A maldita tatuagem única que só um “cara único” tatuaria. Nem tão bonito ele é. Ou era. Porque agora então... Olhando daqui... Enfiado nas almofadas. Belo. Único. Simples. Tão gigante na sua simplicidade. Tem aquele gigante adormecido dentro dele. Aquele gigante que se posiciona nas horas de pavor. Aquela pessoa que não estremece com as maiores adversidades. Acho que a culpa é das almofadas. Da idéia de criar um ambiente. Um ambiente aos amigos. A ele. E as pessoas se jogam assim. Tamanho despojamento. Sem medo. Sem dedos. Sem “pisar em ovos’. E ele. Como o rei quando em fim deita em seu leito. Ninguém observando. Desarmado. E se eu perguntasse...?
-Acho que vou estourar pipoca...Vão querer?
De repente ele está em pé. Felino. Rápido demais.
-Eu quero...
-E você, meu amor?
-Hã...?
-Vai querer pipoca?...O que você tem Clara?
-Eu quero sim... elas estão no arma...ah...você sabe...
Não. A culpa é toda minha. Por ser tão vulnerável a ele. Ao seu sorriso. Seu cheiro. Sua pele. Sua voz rouca. Suas palavras lúcidas. Ele é correto. Age sempre de forma correta. Tão correto ele é. Não me enganaria. Não mentiria. Mas então por que. Se elas não fossem tantas e tão insistentes. Eu não as notaria. E são bonitas, as ordinárias. Tão ruivas. Tão loiras. Eu sou só castanha, como diria a Lygia. Sem graça e castanha. Castanha e pura demais. Mas algumas fumam. Ponto pra mim. Mas tem as que usam minissaia. E levam a certeza no olhar. Eu sou só castanha. Fãs. “São nossas fãs, Clarinha. Fãs da nossa arte.” Só se for da sua arte, meu amor. Da Sua arte.
Mas as piores mesmo são as hippies. Ele sempre se identificou com as hippies. As hippies e seus tornozelos finos. As hippies e sua pele perfeita. As hippies e seus olhos grandes. Elas sabem apreciar nossa arte. E droga. Sempre entendem nossa arte. E falam por meias palavras. E droga. Como ele gosta de meias palavras. Acho que vou virar hippie. Mas nem que eu quisesse. É o tipo de coisa que já nasce com a gente. Dei azar de nascer com o gene excessivo da paranóia. Paranóica. Ah... Como ele é inteligente! E quando pára. Pensa. Solene. Quieto. A tez sobre os olhos curvada. Os olhos aparentemente severos. Apenas meditam. E se eu perguntasse...? Será que ele pensaria antes de responder?
-Pronto. Pipocas quentinhas, meu amor... Ei, Beto! Acorda! Olha a pipoca...
-Desculpa não te ajudar...
-Foi só uma pipoca, Clarinha... Não me perco mais na sua cozinha. Aqui, pra você...
Ele estendeu uma das tigelas. Seus braços. Como são lindos seus braços. As veias que o percorrem. Seus pelos negros. Sua mão forte. E agora tão doce, me estendendo uma tigela de pipoca. Foram essas mesmas mãos que me convenceram de que eu deveria tentar. Foi naquela noite. Depois do ensaio. A direita, por baixo dos meus cabelos, sustentou minha nuca. A esquerda, circulou minha cintura, e prendeu a base das minhas costas. Enquanto seus lábios procuravam os meus. A força nos braços. Nos lábios uma súplica. “Me dê o seu amor”. Todos os dias. É o que tenho feito desde então. Até que ele se canse de mim. Da minha caretice. Dos meus cabelos castanhos. E das pernas que eu prefiro esconder. Até que ele abandone meu palco. Saia da minha cena. Meu grande ator. Meu grande amor. Até que ele deixe essas almofadas. E saia por aquela porta. Mas antes que chegue o dia, eu preciso saber. Preciso perguntar. E não importa ter o Beto como testemunha. Só preciso saber. E vou aproveitar as almofadas.
-Por que eu, Diogo?
Silêncio. O duro silêncio. A fração de segundo que eu tanto temia. O Beto, como eu já esperava, arregalou os olhos. Previsível. Ao contrário dele. Ele. Apenas encrespou as sobrancelhas. Olhou firme nos meus olhos. E de lábios duros e severos, diferentes daqueles que me buscaram pela primeira vez. Como quem responde a uma pergunta que nunca deveria ser feita. Disse apenas.
-E por que não?
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2 comentários:
E por que não?
Eu me pergunto todas as vezes em que limito em ser eu mesmo.
Raspa o resto do prato. Bota no lixo. E o clico vicioso de sujar e lavar louça consiste em estar perto. A velha desculpa de ser comer junto. Depois. Lavar os pratos. Há aqueles em que comem no quarto, na sala. Com o prato na mão, ou preso entre as pernas. Sempre cobertas por um guardanapo. Ou pano de prato. Guardanapo é de papel. Rasga.
Preciso do oculto pra me encontrar. Toca bem forte a porta. Deve ser a camapainha. Mãis não. O interfone. Desisto. Não sei mesmo apreciar os sons. Nem sequer tenho passado milhoes de vezes pra frente o cd todo misturado, gravado, selado. Enfim. Nem se quer tenho ouvido as músicas. Deixa de lado aquela filosofia. Mudanças de hábitos faz esconder a saudade que sentimos.
"que essa saudade que me corroe por dentro..."
São mesmo, metades'. Não é mesmo Oswaldo? Ouvimos o cd todos e cantamos diversas vezes. Comemos frango frito a semana toda. A semana toda eu reclamei. Ela estava lá. Se fosse hoje...
É tão dificil a partida. E o frango, comeria tres semanas seguidas se voce ainda alí estivesse. Melhor que pipoca. Evito pipoca. Engorda. O frango também. Mas é uma gordura com sabor. Como sempre. Cada um sofre por aquilo que tem falta. Eu comeria pipoca e me jogaria depois nas almofadas. Sem contar que não me importaria em assistir todos os canais de TV, sem aquela subta vonta de sair correndo. É claro jamais poderia faltar a montanha de travesseiros ao meu lado pra me fazer a companhia.
Companhia essa que me dói só de lembrar. Dor de saudade. Sáude. Sei. Abri as portas e fui. Sem olhar pra trás, mas se eu pudesse...
E por que não?
Certamente a insegurança e o descompasso do indeciso. Ah, sim. Esses são os malévolos purgantes (ou pulsantes?) da mente.
Uma amiga minha me mostrou esses dias um texto. Nesse texto alguém explicava que haviam quatro obstáculos, pelos quais precisa-se passar, para estar pleno de si e, assim, tornar-se alguém com certa sabedoria. O primeiro é o medo, o segundo a clareza de espírito, o terceiro é o poder e o quarto a velhice.
Ótimo texto. Sempre com um poder descritivo que é capaz de alimentar até as mais remotas imaginações.
Abraços!
Victor
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